segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

PESQUISA DA USP MOSTRA INEFICÁCIA DA "GUERRA ÀS DROGAS"

Se a última reforma na Lei de Drogas (11.343/06) implementada em 2006, que determina que o usuário de droga ilícita não é mais punido com pena de privação de liberdade, parecia trazer mudanças interessantes na opinião daqueles que vêem na “guerra às drogas” uma justificativa para o encarceramento em massa e a criminalização seletiva do setor mais pobre da sociedade, a recente pesquisa lançada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), “Prisão provisória e lei de drogas – um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, mostra que os efeitos têm sido opostos. Junto com o abrandamento da pena para usuário, a lei de 2006 aumentou a pena de 3 para 5 anos para o traficante, cujo crime passou a ser considerado hediondo e, portanto, não passível de liberdade provisória.


“A maioria dos entrevistados disse que tem a sensação de enxugar gelo e que essas prisões não têm resultado em um combate efetivo [ao tráfico]”, relatou Gorete Marques, coordenadora do estudo. Se por um lado a maioria dos policiais mostrou entender que amanhã já entra outro no lugar de quem eles prenderam hoje, por outro, vêem a necessidade de continuar fazendo seu trabalho. A respeito dos presos enquadrados por envolvimento com o comércio ilegal de drogas, “se são traficantes, são no máximo pequenos traficantes. Não correspondem a atores que, retirados dessa cadeia [produtiva do tráfico], surjam efeitos sobre ela. Geralmente são pessoas que estão na ponta, fazem o trabalho da venda direta ao consumidor, e, uma vez retirados desse posto, são substituídas” constata Gorete.

Metodologia

A pesquisa foi elaborada a partir da análise junto a 667 autos (e 923 acusados) de prisão em flagrante de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. A equipe de pesquisadores passou 3 meses acompanhando o Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (DIPO) no Fórum Criminal da Barra Funda (o maior da América Latina). Os processos originados desses autos (se a pessoa respondeu a acusação solta ou presa e as sentenças que saíram nesse período) também serviram de fontes, além de entrevistas com policiais militares e civis, promotores, defensores e juízes.

Lotando os presídios

A prisão provisória – medida processual, de caráter excepcional, na qual a pessoa é mantida presa antes de ser propriamente condenada – tem crescido vertiginosamente no Brasil: de 2005 a 2010 houve aumento de mais de 60% de presos provisórios no sistema carcerário. Concomitante a isso, houve aumento dos presos por tráfico de drogas. No Brasil, em 2006 o sistema penitenciário abarcava 47.472 presos. Até 2010 a taxa pulou para 124%, quando o número atingiu 106.491 presos. Somente em São Paulo o aumento foi de 142%. Já temos a quarta maior população carcerária do mundo, ficando atrás somente dos EUA, China e Rússia.

Questionados a respeito da utilização do dispositivo de prisão provisória, muitos juízes demonstraram que a medida vai além de um dispositivo cautelar. Somando-se ao sentimento de um anseio da população que cobraria que os operadores do direito “mostrem serviço”, muitos simplesmente se vêem na condição de antecipar a sentença, como mostrou trecho de uma entrevista (anônima) feita com um juiz durante o estudo: “Se você condenar, para o indivíduo não mudou nada, prisão é prisão, só muda o nome. Em termos é uma antecipação de pena, qualquer juiz acaba fazendo esse cálculo”.

Perfil dos presos por tráfico de drogas

Os pesquisadores do NEV conseguiram desenhar um retrato dos flagrantes de tráfico de drogas na capital paulista. Em quase todos os casos a detenção é feita pela Polícia Militar (87%), ou seja, em via pública. Na maioria dos casos a pessoa é apreendida sozinha e, portanto, a única testemunha é o policial que faz a prisão. Apesar do enquadramento como traficante, a média da quantidade de entorpecentes apreendidos por ocorrência se mostrou bastante baixa: 66,5 gramas, incluindo maconha, cocaína, e outras drogas.Prisao-i2

Quase nenhuma menção ao envolvimento do acusado com organizações criminosas foi encontrada na amostra: em apenas 1,8% dos casos há alguma relação. Apenas em 4% dos casos houve investigação ou apuração dos flagrantes. “Os delegados costumavam dizer que por serem flagrantes, já trazem todos os elementos que precisariam ser levantados para o inquérito. Na verdade o inquérito era o próprio auto de flagrante, com depoimento do policial que fez a prisão, do acusado e um laudo comprovando que a droga é ilícita”, resume Gorete.

Quanto ao perfil dos apreendidos durante os três meses (novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011), 87% eram homens, maioria entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com até o primeiro grau completo, sem antecedentes criminais e que declarou no momento da prisão exercer alguma atividade remunerada. Apesar dos autos não registrarem a média de renda das pessoas, é possível ter ideia da classe social que é alvo da “repressão ao tráfico” ao observar que em 61% dos casos a pessoa é atendida pela Defensoria Pública (que presta assistência jurídica a pessoas que ganham até 3 salários mínimos). O estudo indicou ainda que 81% das pessoas tiverem contato com seu defensor depois de 3 meses ou mais de prisão provisória, normalmente apenas 10 minutos antes da primeira audiência. “Os defensores públicos entrevistados alegaram que têm muita dificuldade de fazer a defesa principalmente em caso de tráfico”, conta Gorete.

O levantamento junto aos autos de prisão em flagrante, demonstra que as mulheres (13% das pessoas detidas durante o período em questão), quando comparadas proporcionalmente, foram presas através de denúncias (35%), e em revistas na penitenciária (10,9%), enquanto os homens sofreram mais abordagens a partir de patrulhamento de rotina (67,8%).

A “diferença” entre usuário e traficante

Diferente do que se esperaria, a Lei de Drogas não determina a quantidade de entorpecente ilícito que definiria a linha entre usuário e traficante. A distinção, feita de acordo com local, circunstância, disposição da droga (se estava dividia em porções) e outros fatores subjetivos, acaba sendo feita pelo próprio policial ou juiz, não raras vezes apoiada em graves preconceitos.

“Atitude suspeita é um gesto de anormalidade. Um cara de terno numa favela é normal?! Ou ele foi buscar [droga] pra consumo ou ele tá envolvido com o tráfico. Dei aula na escola de soldados. Os soldados me questionavam: é atitude suspeita um negro num Audi? Depende do local, das circunstâncias”, afirmou um policial militar entrevistado na pesquisa, confirmando trecho da música “Caso de polícia”, de Rappin Hood: “Se você for preto como eu ou meu irmão, parado é suspeito, correndo é ladrão”.

“A diferença [entre usuário e traficante] é estabelecida de acordo com o poder aquisitivo do apreendido. Se ele tem poder aquisitivo alto e é pego com 10 papelotes, ele pode ser usuário. Já se uma pessoa de poder aquisitivo baixo é pega com a mesma quantidade é mais fácil acreditar que ele seja traficante, pois ele não tem capacidade financeira de comprar a droga”, admitiu um delegado em entrevista ao estudo.

“Em cerca de 44% dos casos, os policiais que realizaram a prisão em flagrante disseram que o acusado teria confessado o crime no momento da prisão, o que para defensores não pode ser provado e não deveria ter o peso que tem no julgamento”, salientou a pesquisa do NEV. “Eu não tenho certeza que ele estava vendendo, mas as circunstâncias me levam a crer que sim. Não precisa ter a certeza absoluta de que um crime aconteceu para você condenar alguém, o que eu preciso é não ter dúvida do contrário. Precisa ser uma dose de razoabilidade”, descreve um promotor entrevistado.

Antes e depois

A respeito da diferença entre a política de drogas antes e depois da lei de 2006, a conclusão do sumário executivo da pesquisa aponta que “se algo mudou, esta mudança não foi sentida pelos operadores que continuam prendendo, processando, defendendo e julgando os mesmos réus”. Durante os três meses de colheita de dados, “nenhum financiador do tráfico foi preso em flagrante e nenhum acusado advindo da classe média foi mantido preso”.

Entre as recomendações que aparecem ao final da pesquisa, consta a reavaliação da forma como usuários e traficantes são definidos pela atual legislação de drogas, o fortalecimento das defensorias públicas, o investimento em pesquisas nos variados campos de conhecimento sobre drogas e em programas de tratamento para presos que são dependentes de drogas, além da ampliação do debate sobre drogas abordando temas como políticas de redução de danos, discriminalização e legalização das drogas.

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