A
s recentes greves e mobilizações de policiais em
vários Estados são um reflexo tardio de uma crise
profunda que ultrapassa
em muito as reivindica-
ções salariais. Para se compreender a natureza dos fenômenos em curso, é preciso, primeiramente, observar que as duas
polícias que atuam nos Estados (Civil e
Militar) possuem suas origens respectivas
em “campos” (no sentido de Bourdieu)
determinados – que não representam especificamente os desafios da segurança
pública: as Polícias Civis emergiram do
campo do Direito, e as Polícias Militares,
do campo da Defesa. Suas origens remontam à criação, em 1808, da Intendência
Geral de Polícia da Corte e, um ano após,
da Guarda Real da Polícia da Corte, por
Dom João VI.
Essas estruturas, é oportuno lembrar,
não surgiram para o enfrentamento das
dinâmicas criminais ou para a garantia
dos direitos da cidadania, mas – como
ocorreu também na grande maioria dos
Estados modernos – para atender à necessidade de contenção de distúrbios sociais antes enfrentados diretamente pelas
Forças Armadas. Por conta desse pertencimento original, as instituições policiais
foram “mimetizando” os campos da Defesa e da Justiça. Assim, durante muito tempo, as polícias estaduais atuaram como se
exércitos fossem. A Força Pública de São
Paulo contou com artilharia aérea e esteve
envolvida em conflitos em vários Estados.
Em 1905, essa polícia contratou a Missão
Francesa, recebendo dela instrução militar, 12 anos antes do Exército. Em 1932,
travou guerra contra o Exército, disputa
que Getúlio Vargas só venceu por contar
com o apoio da polícia mineira. Isso estimulou a Constituição de 1934 a declarar
as forças públicas estaduais como “forças
auxiliares e de reserva do Exército”, disposição que permanece até hoje.
De outra parte, as polícias civis transformam-se em “filtros” do Poder Judiciá-
rio, selecionando os fatos que mereceriam
apreciação dos magistrados. De novo, a
força mimética, com o inquérito policial
operando como um “pré-processo” penal,
em que se forma a culpa sem as garantias
do contraditório e da ampla defesa – em
desrespeito, portanto, à ordem igualitária
que segue sendo declarada pela lei, mas
violada pelo modelo. O inquérito policial,
assinale-se, é outra característica do nosso
modelo que se afasta da experiência internacional e que é, sabidamente, contraproducente.
Praças das PMs identificam no espelhamento de sua corporação com as Forças
Armadas um dos problemas mais sérios
da instituição. A maioria deles, inclusive,
desejaria uma polícia desmilitarizada. Já a
maioria dos oficiais preza o reflexo e atribui destacada importância às noções de
disciplina e hierarquia típicas do Exército.
De outra parte, os integrantes das carreira
iniciais das PCs não se identificam como
“operadores do Direito”; o que demarca
uma diferença plena de repercussões com
a autoimagem dos delegados, bacharéis em
Direito, que lutam pela equiparação funcional com as chamadas “carreiras jurídicas”.
Importa perceber, então, que – em
contraste com as nações modernas – os
esforços pela “policialização” das polícias
(conforme a expressão de Karnikowski) e
pela formação de um “campo da seguran-
ça pública” ainda não foram concluídos
no Brasil. Como assinala Mateus Afonso
Medeiros, “está incompleta a conquista
democrática da separação institucional
Polícia-Justiça e Polícia-Exército”.
O que há de mais notável no modelo
de polícia construído no Brasil, entretanto, deriva da opção pela repartição do ciclo de policiamento. A instituição policial
moderna em todo o mundo desempenha
suas funções a partir do que se denomina “Ciclo Completo de Policiamento”; em
outras palavras: as polícias modernas
são instituições profissionais cujo mandato envolve as tarefas de 1) manutenção
da paz pública, 2) garantia dos direitos
elementares da cidadania, 3) prevenção
do crime e 4) apuração das responsabilidades penais. Mas, no Brasil, se entendeu
que uma das polícias – a Militar – seria
encarregada da “prevenção”, pela presen-
ça ostensiva do patrulhamento fardado e
outra – a Civil – seria encarregada da investigação criminal. Assim, a especializa-
ção entre patrulheiros e investigadores, em
todo o mundo feita dentro das polícias, foi
aqui dividida entre duas instituições com
culturas e estruturas completamente distintas. O resultado é que nunca tivemos
duas polícias nos Estados, mas duas “metades de polícia”, cada uma responsável
por metade do ciclo de policiamento.
A bipartição do ciclo impede que os
policiais encarregados da investigação
tenham acesso às informações coletadas
pelos patrulheiros. Sem profissionais no
policiamento ostensivo, as Polícias Civis
não podem contar com um competente
sistema de coleta de informações. Não por
outra razão, recorrem com tanta frequência aos “informantes” – quase sempre pessoas que mantêm ligações com o mundo
do crime, condição que empresta à investigação limitações estruturais e, com frequência, dilemas éticos de difícil solução.
As Polícias Militares, por seu turno, impedidas de apurar responsabilidades criminais, não conseguem atuar efetivamente
na prevenção, vez que a ostensividade – ao
contrário do que imagina o senso comum
– não previne a ocorrência do crime, mas
o desloca (potenciais infratores não costumam praticar delitos na presença de policiais; mas não mudam de ideia, mudam
de local).
Patrulhamento e investigação são, na
verdade, faces de um mesmo trabalho que
deve integrar as fases do planejamento
da ação policial, desde o diagnóstico das
tendências criminais até a formulação de
planos de ação, monitoramento e avalia-
ção de resultados. No Brasil, isso se tornou
inviável. Mas, como laranjas cortadas a
meio não permanecem em pé, as polícias
intuem que precisam do ciclo completo
(da outra metade). Por isso, historicamente, ambas procuram incorporar as
“prerrogativas de função” que lhes faltam,
o que tem estimulado a conhecida e disfuncional hostilidade entre elas, traduzida
pela ausência de colaboração e, não raro,
por iniciativas de boicote. Não satisfeito
com a bipartição do ciclo, nosso modelo de polícia – também de forma inédita
– ainda estabeleceu diferentes “portas de
entrada” para cada polícia, o que gerou novo “corte” – agora horizontal – dentro das
corporações: nas PMs temos duas partes,
oficiais e não oficiais, e nas PCs, delegados
e não delegados. Entre estas “partes” de
polícia há um abismo de prestígio, poder,
formação e remuneração que é, cada vez
mais, insuportável. A ausência de carreira
única em cada polícia, com efeito, inviabiliza a instituição policial brasileira, porque
reafirma a desigualdade, estimula o autoritarismo e consagra privilégios; promovendo, muito compreensivelmente, uma
“guerra” não declarada dentro das corporações. Também por isto, nossas polícias
não conseguem completar seus efetivos
e parcelas expressivas de policiais apenas
aguardam oportunidade para deixar suas
instituições. O problema da evasão, é claro, vincula-se também aos baixos salários.
Esta realidade, por sua vez, agencia outras
distorções, entre elas o “bico” e a formatação de jornadas absolutamente irracionais para a lógica do serviço público, mas
funcionais para a prevalência do segundo
emprego. Assim, por exemplo, jornadas de
24 por 72 horas (ou seja: plantões de 24h
seguidos por três dias de folga) tornaramse comuns nas polícias civis no Brasil, oferecendo exemplo de como se impedir que
uma instituição funcione minimamente.
Policiais com um segundo emprego,
entretanto, assumem vários riscos. Um
estudo de Maria Cecília de Souza Minayo
e Edinilsa Ramos Souza revelou que, do
4.518 policiais mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, no Estado
do RJ, 56,1% foram vitimados durante as
folgas. O “bico”, entretanto, é só a ponta de
um iceberg de distorções que tendem a se
avolumar e cujo desfecho aponta para a
formação das milícias – de longe o mais
sério problema de segurança pública em
alguns Estados, com destaque para o Rio.
Mas a violência sofrida pelos policiais
não lhes ameaça apenas desde o “exterior”.
O amplo estudo que realizamos com Silvia
Ramos e Luiz Eduardo Soares (disponível
em http://bit.ly/x4PWnf) chamou atenção
para o fato de que parte expressiva da violência sofrida pelos profissionais da segurança pública ocorre no interior das suas
corporações. Assim, por exemplo, 20% dos
policiais brasileiros são vítimas de tortura
em seus processos de “formação”; 53,9%
deles já foram humilhados pelos superiores hierárquicos e mais de um quarto dos
policiais entende que sua corporação já
lhes negou ou cerceou o direito de defesa.
Além disso, 61,1% deles afirmaram já terem sofrido tratamentos discriminatórios
pelo fato de serem policiais civis ou militares, bombeiros, guardas municipais ou
agentes penitenciários e pelo menos 16%
das mulheres que atuam nestas institui-
ções já foram vítimas de assédio sexual
em suas corporações.
Desrespeitados como cidadãos, obrigados a um cotidiano embrutecedor e sem
qualquer apoio psicossocial, desvalorizados profissionalmente, desestimulados ao
estudo e à reflexão e, não raro, “adestrados”
pelo autoritarismo, estes policiais irão para as ruas nas piores condições, tendendo
a reproduzir a mesma desconsideração
em suas relações com o público, destac adamente quando tratarem com pobres e
marginalizados. O círculo de estupidez e
ineficiência, então, se completa com os resultados conhecidos.
No passado, alguns dos críticos do modelo levantaram a bandeira da unificação
das polícias. Uma sugestão plena de boas
intenções, mas completamente equivocada. Múltiplas estruturas de policiamento
conformam uma das características mais
importantes dos modelos contemporâneos de segurança pública na grande maioria dos países democráticos. Inglaterra e
País de Gales possuem 43 forças policiais
autônomas; a Noruega possui 54 polícias
distritais; a Escócia, oito polícias regionais;
os Estados Unidos possuem pelo menos 25 mil polícias autônomas; a Bélgica,
2.359; o Canadá tem 450 polícias municipais, além de várias forças provinciais e da
Royal Canadian Mounted Police. Poucas
nações possuem polícia única (Sri Lanka,
Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polí-
cias menores são mais facilmente administradas e avaliadas. São também mais
ágeis e tendem à especialização. Institui-
ções policiais enormes, pelo contrário, são
de difícil manejo e supervisão. Também
por isso, eventual unificação das polícias
no Brasil tenderia a somar os defeitos das
instituições que temos, subtraindo suas
virtudes. Por fim, a unificação agregaria
risco considerável à democracia, incluindo
a possibilidade de “emparedamento” do
Estado por demandas corporativas.
O caminho da reforma, pelo contrário,
deve estimular o surgimento de novas instituições policiais, além de integral autonomia aos Bombeiros e às perícias; tendência
que – apesar dos limites constitucionais
– já se impõe no Brasil que formou uma
Guarda Nacional e cujos municípios têm
constituído Agências de Fiscalização de
Trânsito e Guardas Municipais (que, embora sem este nome, polícias são). O fundamental é que todas elas tenham o ciclo
completo de policiamento (o que no Brasil
só a Polícia Federal possui) e carreiras únicas (uma única porta de entrada em cada
polícia) como no resto do mundo. Esta é
a base para que possamos ter polícias eficazes e para que as noções de segurança
sejam fundadas em evidências científicas
e não na cultura institucional do atraso e
do preconceito. Este é também o caminho
para que tenhamos polícias comunitárias
acostumadas ao controle social e aos processos de prestação de contas e responsabilização pública (accountability).
Para que a existência de várias polícias
com ciclo completo não seja redundante
e não implique novas disputas, deve-se
optar por um dos seguintes caminhos: ou
se estabelece uma base distrital para cada
polícia (modelo britânico) ou definimos
responsabilidades distintas para as polí-
cias de acordo com tipos criminais (o que
caracteriza, em grande parte, a experiência americana). Tendo presente a história
centenária das polícias militares e civis no
Brasil, seria de todo desaconselhável que
elas fossem reorganizadas para atuar a
partir de bases distritais exclusivas. O mais
adequado seria a divisão de vocações por
tipos penais. Assim, por exemplo, as Polí-
cias Civis poderiam tratar de crimes contra
a vida, sequestros, crimes sexuais, tráfico
de drogas e crimes do “colarinho branco”,
enquanto as Polícias Militares poderiam
cuidar dos delitos patrimoniais (furtos e
roubos) e da manutenção da paz pública.
Em um sistema do tipo, as Guardas Mun icipais poderiam responder aos conflitos de
“baixa densidade” como arruaça, vandalismo, disputas entre vizinhos, importunação
ao sossego, violência doméstica etc. Uma
divisão do tipo tornaria possível que tivéssemos um sistema de segurança pública
no Brasil, encerrando a pré-história das
polícias brasileiras.
Reformas desta natureza exigem, por
óbvio, um amplo esforço político, vez que
nosso modelo de polícia foi, inacreditavelmente, inserido na Constituição Federal, notadamente
em seu art. 144. Tendo em
conta a destacada inaptidão
do Congresso Nacional para reformar o que quer que
seja e o notório desinteresse
do governo federal sobre este tema, deve-se reconhecer
que as perspectivas não são
alentadoras. Os governadores poderiam constituir
esta agenda. Afinal, é nos
Estados que a crise se instala e – observados princípios
gerais – se deveria permitir margem de
autonomia aos entes da federação para
que pudessem reformar e/ou instituir suas próprias polícias. Seja como for, nunca a
crise do modelo de polícia no Brasil foi tão
evidente. O que não nos garante qualquer
solução. Afinal, convivemos com uma realidade política na qual tem sido preferível
não pensar, não discutir e não fazer. Só
por isso, as greves e protestos dos policiais
têm um sentido histórico. Em seus acertos
e em seus erros, as mobilizações introduziram um dado novo: os policiais exigem
mudanças. Resta saber se alguém saberá
interpretar este sentimento.
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