segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Laranjas cortadas não param em pé As razões pelas quais o Brasil precisa de um novo modelo de polícia



                                                      
Soldado do exército patrulha as ruas do centro histórico de Salvador, na BahiaGeneral Gonçalves Dias, que está à frente da operação na greve da PM, recebeu um bolo dos manifestantes em comemoração ao seu aniversário hojeA tropa de choque da Polícia Militar se juntou, na manhã desta segunda-feira, aos homens do Exército, das Forças Armadas e da Polícia Civil no cerco a Assembleia Legislativa da BahiaHomens do Exército, Força Nacional, Polícia Federal e das Companhias Independentes de Policiamento Especializado da Polícia Militar cercaram a Assembleia Legislativa da Bahia na manhã desta segunda-feira
A
s recentes greves e mobilizações de policiais em 
vários Estados são um reflexo tardio de uma crise 
profunda que ultrapassa 
em muito as reivindica-
ções salariais. Para se compreender a natureza dos fenômenos em curso, é preciso, primeiramente, observar que as duas 
polícias que atuam nos Estados (Civil e 
Militar) possuem suas origens respectivas 
em “campos” (no sentido de Bourdieu) 
determinados – que não representam especificamente os desafios da segurança 
pública: as Polícias Civis emergiram do 
campo do Direito, e as Polícias Militares, 


do campo da Defesa. Suas origens remontam à criação, em 1808, da Intendência 
Geral de Polícia da Corte e, um ano após, 
da Guarda Real da Polícia da Corte, por 
Dom João VI.  
Essas estruturas, é oportuno lembrar, 
não surgiram para o enfrentamento das 
dinâmicas criminais ou para a garantia 
dos direitos da cidadania, mas – como 
ocorreu também na grande maioria dos 
Estados modernos – para atender à necessidade de contenção de distúrbios sociais antes enfrentados diretamente pelas 
Forças Armadas. Por conta desse pertencimento original, as instituições policiais 
foram “mimetizando” os campos da Defesa e da Justiça. Assim, durante muito tempo, as polícias estaduais atuaram como se 
exércitos fossem. A Força Pública de São 
Paulo contou com artilharia aérea e esteve 
envolvida em conflitos em vários Estados. 
Em 1905, essa polícia contratou a Missão 
Francesa, recebendo dela instrução militar, 12 anos antes do Exército. Em 1932, 
travou guerra contra o Exército, disputa 
que Getúlio Vargas só venceu por contar 
com o apoio da polícia mineira. Isso estimulou a Constituição de 1934 a declarar 
as forças públicas estaduais como “forças 
auxiliares e de reserva do Exército”, disposição que permanece até hoje.  
De outra parte, as polícias civis transformam-se em “filtros” do Poder Judiciá-
rio, selecionando os fatos que mereceriam 
apreciação dos magistrados. De novo, a 
força mimética, com o inquérito policial 
operando como um “pré-processo” penal, 
em que se forma a culpa sem as garantias 
do contraditório e da ampla defesa – em 
desrespeito, portanto, à ordem igualitária 
que segue sendo declarada pela lei, mas 
violada pelo modelo. O inquérito policial, 
assinale-se, é outra característica do nosso 
modelo que se afasta da experiência internacional e que é, sabidamente, contraproducente.
Praças das PMs identificam no espelhamento de sua corporação com as Forças 
Armadas um dos problemas mais sérios 
da instituição. A maioria deles, inclusive, 
desejaria uma polícia desmilitarizada. Já a 
maioria dos oficiais preza o reflexo e atribui destacada importância às noções de 
disciplina e hierarquia típicas do Exército. 
De outra parte, os integrantes das carreira                  

iniciais das PCs não se identificam como 
“operadores do Direito”; o que demarca 
uma diferença plena de repercussões com 
a autoimagem dos delegados, bacharéis em 
Direito, que lutam pela equiparação funcional com as chamadas “carreiras jurídicas”. 
Importa perceber, então, que – em 
contraste com as nações modernas – os 
esforços pela “policialização” das polícias 
(conforme a expressão de Karnikowski) e 
pela formação de um “campo da seguran-
ça pública” ainda não foram concluídos 
no Brasil. Como assinala Mateus Afonso 
Medeiros, “está incompleta a conquista 
democrática da separação institucional 
Polícia-Justiça e Polícia-Exército”.
O que há de mais notável no modelo 
de polícia construído no Brasil, entretanto, deriva da opção pela repartição do ciclo de policiamento. A instituição policial 
moderna em todo o mundo desempenha 
suas funções a partir do que se denomina “Ciclo Completo de Policiamento”; em 
outras palavras: as polícias modernas 
são instituições profissionais cujo mandato envolve as tarefas de 1) manutenção 
da paz pública, 2) garantia dos direitos      

elementares da cidadania, 3) prevenção 
do crime e 4) apuração das responsabilidades penais. Mas, no Brasil, se entendeu 
que uma das polícias – a Militar – seria 
encarregada da “prevenção”, pela presen-
ça ostensiva do patrulhamento fardado e 
outra – a Civil – seria encarregada da investigação criminal. Assim, a especializa-
ção entre patrulheiros e investigadores, em 
todo o mundo feita dentro das polícias, foi 
aqui dividida entre duas instituições com 
culturas e estruturas completamente distintas. O resultado é que nunca tivemos 
duas polícias nos Estados, mas duas “metades de polícia”, cada uma responsável 
por metade do ciclo de policiamento. 
A bipartição do ciclo impede que os 
policiais encarregados da investigação 
tenham acesso às informações coletadas 
pelos patrulheiros. Sem profissionais no 
policiamento ostensivo, as Polícias Civis 
não podem contar com um competente 
sistema de coleta de informações. Não por 
outra razão, recorrem com tanta frequência aos “informantes” – quase sempre pessoas que mantêm ligações com o mundo 
do crime, condição que empresta à investigação limitações estruturais e, com frequência, dilemas éticos de difícil solução. 
As Polícias Militares, por seu turno, impedidas de apurar responsabilidades criminais, não conseguem atuar efetivamente 
na prevenção, vez que a ostensividade – ao 
contrário do que imagina o senso comum 
– não previne a ocorrência do crime, mas 
o desloca (potenciais infratores não costumam praticar delitos na presença de policiais; mas não mudam de ideia, mudam 
de local).  
Patrulhamento e investigação são, na 
verdade, faces de um mesmo trabalho que 
deve integrar as fases do planejamento 
da ação policial, desde o diagnóstico das 
tendências criminais até a formulação de 
planos de ação, monitoramento e avalia-
ção de resultados. No Brasil, isso se tornou 
inviável. Mas, como laranjas cortadas a         

meio não permanecem em pé, as polícias 
intuem que precisam do ciclo completo 
(da outra metade). Por isso, historicamente, ambas procuram incorporar as 
“prerrogativas de função” que lhes faltam, 
o que tem estimulado a conhecida e disfuncional hostilidade entre elas, traduzida 
pela ausência de colaboração e, não raro, 
por iniciativas de boicote. Não satisfeito 
com a bipartição do ciclo, nosso modelo de polícia – também de forma inédita 
– ainda estabeleceu diferentes “portas de 
entrada” para cada polícia, o que gerou novo “corte” – agora horizontal – dentro das 
corporações: nas PMs temos duas partes, 
oficiais e não oficiais, e nas PCs, delegados 
e não delegados. Entre estas “partes” de 
polícia há um abismo de prestígio, poder, 
formação e remuneração que é, cada vez 
mais, insuportável. A ausência de carreira 
única em cada polícia, com efeito, inviabiliza a instituição policial brasileira, porque 
reafirma a desigualdade, estimula o autoritarismo e consagra privilégios; promovendo, muito compreensivelmente, uma 
“guerra” não declarada dentro das corporações. Também por isto, nossas polícias 
não conseguem completar seus efetivos 
e parcelas expressivas de policiais apenas 
aguardam oportunidade para deixar suas 
instituições. O problema da evasão, é claro, vincula-se também aos baixos salários. 
Esta realidade, por sua vez, agencia outras 
distorções, entre elas o “bico” e a formatação de jornadas absolutamente irracionais para a lógica do serviço público, mas 
funcionais para a prevalência do segundo 
emprego. Assim, por exemplo, jornadas de 
24 por 72 horas (ou seja: plantões de 24h 
seguidos por três dias de folga) tornaramse comuns nas polícias civis no Brasil, oferecendo exemplo de como se impedir que 
uma instituição funcione minimamente. 
Policiais com um segundo emprego, 
entretanto, assumem vários riscos. Um 
estudo de Maria Cecília de Souza Minayo 
e Edinilsa Ramos Souza revelou que, do           

4.518 policiais mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, no Estado 
do RJ, 56,1% foram vitimados durante as 
folgas. O “bico”, entretanto, é só a ponta de 
um iceberg de distorções que tendem a se 
avolumar e cujo desfecho aponta para a 
formação das milícias – de longe o mais 
sério problema de segurança pública em 
alguns Estados, com destaque para o Rio.
Mas a violência sofrida pelos policiais 
não lhes ameaça apenas desde o “exterior”. 
O amplo estudo que realizamos com Silvia 
Ramos e Luiz Eduardo Soares (disponível 
em http://bit.ly/x4PWnf) chamou atenção 
para o fato de que parte expressiva da violência sofrida pelos profissionais da segurança pública ocorre no interior das suas 
corporações. Assim, por exemplo, 20% dos 
policiais brasileiros são vítimas de tortura 
em seus processos de “formação”; 53,9% 
deles já foram humilhados pelos superiores hierárquicos e mais de um quarto dos 
policiais entende que sua corporação já 
lhes negou ou cerceou o direito de defesa. 
Além disso, 61,1% deles afirmaram já terem sofrido tratamentos discriminatórios 
pelo fato de serem policiais civis ou militares, bombeiros, guardas municipais ou 
agentes penitenciários e pelo menos 16% 
das mulheres que atuam nestas institui-
ções já foram vítimas de assédio sexual 
em suas corporações.
Desrespeitados como cidadãos, obrigados a um cotidiano embrutecedor e sem 
qualquer apoio psicossocial, desvalorizados profissionalmente, desestimulados ao 
estudo e à reflexão e, não raro, “adestrados” 
pelo autoritarismo, estes policiais irão para as ruas nas piores condições, tendendo 
a reproduzir a mesma desconsideração 
em suas relações com o público, destac           adamente quando tratarem com pobres e 
marginalizados. O círculo de estupidez e 
ineficiência, então, se completa com os resultados conhecidos.
No passado, alguns dos críticos do modelo levantaram a bandeira da unificação 
das polícias. Uma sugestão plena de boas 
intenções, mas completamente equivocada. Múltiplas estruturas de policiamento 
conformam uma das características mais 
importantes dos modelos contemporâneos de segurança pública na grande maioria dos países democráticos. Inglaterra e 
País de Gales possuem 43 forças policiais 
autônomas; a Noruega possui 54 polícias 
distritais; a Escócia, oito polícias regionais; 
os Estados Unidos possuem pelo menos 25 mil polícias autônomas; a Bélgica, 
2.359; o Canadá tem 450 polícias municipais, além de várias forças provinciais e da 
Royal Canadian Mounted Police. Poucas 
nações possuem polícia única (Sri Lanka, 
Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polí-
cias menores são mais facilmente administradas e avaliadas. São também mais 
ágeis e tendem à especialização. Institui-
ções policiais enormes, pelo contrário, são 
de difícil manejo e supervisão. Também 
por isso, eventual unificação das polícias 
no Brasil tenderia a somar os defeitos das 
instituições que temos, subtraindo suas 
virtudes. Por fim, a unificação agregaria 
risco considerável à democracia, incluindo 
a possibilidade de “emparedamento” do 
Estado por demandas corporativas.
O caminho da reforma, pelo contrário, 
deve estimular o surgimento de novas instituições policiais, além de integral autonomia aos Bombeiros e às perícias; tendência 
que – apesar dos limites constitucionais 
– já se impõe no Brasil que formou uma    

Guarda Nacional e cujos municípios têm 
constituído Agências de Fiscalização de 
Trânsito e Guardas Municipais (que, embora sem este nome, polícias são). O fundamental é que todas elas tenham o ciclo 
completo de policiamento (o que no Brasil 
só a Polícia Federal possui) e carreiras únicas (uma única porta de entrada em cada 
polícia) como no resto do mundo.  Esta é 
a base para que possamos ter polícias eficazes e para que as noções de segurança 
sejam fundadas em evidências científicas 
e não na cultura institucional do atraso e 
do preconceito. Este é também o caminho 
para que tenhamos polícias comunitárias 
acostumadas ao controle social e aos processos de prestação de contas e responsabilização pública (accountability). 
Para que a existência de várias polícias 
com ciclo completo não seja redundante 
e não implique novas disputas, deve-se 
optar por um dos seguintes caminhos: ou 
se estabelece uma base distrital para cada 
polícia (modelo britânico) ou definimos 
responsabilidades distintas para as polí-
cias de acordo com tipos criminais (o que 
caracteriza, em grande parte, a experiência americana).  Tendo presente a história 
centenária das polícias militares e civis no 
Brasil, seria de todo desaconselhável que 
elas fossem reorganizadas para atuar a 
partir de bases distritais exclusivas. O mais 
adequado seria a divisão de vocações por 
tipos penais. Assim, por exemplo, as Polí-
cias Civis poderiam tratar de crimes contra 
a vida, sequestros, crimes sexuais, tráfico 
de drogas e crimes do “colarinho branco”, 
enquanto as Polícias Militares poderiam 
cuidar dos delitos patrimoniais (furtos e 
roubos) e da manutenção da paz pública. 
Em um sistema do tipo, as Guardas Mun           icipais poderiam responder aos conflitos de 
“baixa densidade” como arruaça, vandalismo, disputas entre vizinhos, importunação 
ao sossego, violência doméstica etc. Uma 
divisão do tipo tornaria possível que tivéssemos um sistema de segurança pública 
no Brasil, encerrando a pré-história das 
polícias brasileiras.
Reformas desta natureza exigem, por 
óbvio, um amplo esforço político, vez que 
nosso modelo de polícia foi, inacreditavelmente, inserido na Constituição Federal, notadamente 
em seu art. 144. Tendo em 
conta a destacada inaptidão 
do Congresso Nacional para reformar o que quer que 
seja e o notório desinteresse 
do governo federal sobre este tema, deve-se reconhecer 
que as perspectivas não são 
alentadoras.  Os governadores poderiam constituir 
esta agenda. Afinal, é nos 
Estados que a crise se instala e – observados princípios 
gerais – se deveria permitir margem de 
autonomia aos entes da federação para 
que pudessem reformar e/ou instituir suas próprias polícias. Seja como for, nunca a 
crise do modelo de polícia no Brasil foi tão 
evidente. O que não nos garante qualquer 
solução. Afinal, convivemos com uma realidade política na qual tem sido preferível 
não pensar, não discutir e não fazer. Só 
por isso, as greves e protestos dos policiais 
têm um sentido histórico. Em seus acertos 
e em seus erros, as mobilizações introduziram um dado novo: os policiais exigem 
mudanças. Resta saber se alguém saberá 
interpretar este sentimento.                                                 

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