sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Uso de força e ostensividade na ação policial



Jacqueline Muniz*
Domício Proença Júnior*
Eugenio Diniz*
É curioso que a percepção do problema do uso da força pela polícia e a discussão de sua propriedade no Brasil se dêem com base na ingenuidade perigosa que não distingue – ou não quer distinguir – o uso da violência (um ato arbitrário, ilegal, ilegítimo e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo e idealmente profissional). Esta situação é agravada pela ausência de um acervo reflexivo cientificamente embasado e informado pela realidade comparativa com outros países, o que abre espaço para comportamentos militantes e preconceituosos. De fato, intervenções tecnicamente corretas do ponto de vista da ação policial têm sido lançadas à vala comum da "brutalidade policial" e erigidas em símbolo de uma mítica banalização da violência, que explicaria o atual estado da criminalidade em nossas cidades. O ônus desta indistinção é imenso, sobretudo para as organizações policiais, que se vêem na situação impossível de ter que tomar decisões em ambientes de incerteza e risco sem qualquer critério que as oriente quanto à propriedade das alternativas adotadas.


Indo mais longe, este equívoco tem se materializado em falsas questões, onde se enxergam antinomias que a realidade evidencia como unidades. Assim, erigem-se falsas contradições, como as que polarizam "polícia força versus polícia serviço", ou, de forma ainda mais grave, "operacionalidade versus direitos humanos", perdendo-se de vista a especificidade originária das polícias como organizações de força comedida, inteiramente voltadas para a "proteção social". Vê-se como muito deste debate tem servido para mascarar a centralidade do respaldo pela força na realidade do trabalho de polícia e do provimento de ordem pública.
Como resultado, evidencia-se um senso comum que considera a força como exclusivamente presente de forma episódica e pontual e, no seu extremo, letal. Por esta lógica, a força só se faria presente naqueles episódios propriamente repressivos como "confrontos armados", crimes "violentos" em andamento etc. De um lado, este tipo de enquadramento perde de vista um fato básico: no momento de interação com a população, a perspectiva do uso da força, se necessário, está posta por antecipação. É, de fato, o que faz com que o cidadão "chame a polícia". É porque o policial está legalmente autorizado ao uso da força que ele pode intervir abrindo possibilidades de resolução dos conflitos que vão desde a negociação até a imposição de formas de obediência. De outro lado, este senso comum não percebe o quanto a possibilidade de compelir, se necessário, viabiliza a possibilidade mesma dos atendimentos assistenciais e auxiliares. Há momentos, exatamente nestas situações, em que o policial assume o papel de um coordenador que decide o que será feito, comanda as ações e determina os comportamentos. Este é o caso, por exemplo, de um socorro a vítimas de acidente de trânsito: parar o trânsito, cercar a área, afastar os transeuntes, chamar a ambulância, assegurar o seu acesso, lidar com parentes e vítimas, respaldar as decisões médicas dos atendentes, coordenar o apoio para um trânsito rápido até o hospital, e mesmo colaborar para a presteza do atendimento das vítimas. Tudo isso seria impossível sem a perspectiva de compelir, o que pressupõe, uma vez mais, a possibilidade do uso de força para obter obediência. Fica evidente a impropriedade de considerações que ambicionam, contraditoriamente, o provimento de ordem pública sem a possibilidade do recurso à força, ignorando o papel desta como uma ferramenta imprescindível de mediação entre conflitos de interesses. Diante de uma realidade conflituosa, se nenhum dos lados dispõe da força, e nenhum dos lados está disposto a conceder, resta apenas a solução violenta (arbitrária, ilegal, ilegítima e amadora). A falsa expectativa do especialista, do médico numa situação emergencial, por exemplo, ignora a presteza dependente da força que está dada previamente – afinal, chamou-se por socorro. De forma análoga, perde-se de vista o papel diretivo da autoridade, uma vez mais sustentado pela possibilidade de compelir, em algo tão simples quanto um sinal quebrado. Assim se vê como a força que respalda a autoridade de polícia é inseparável de todas as suas ações, ainda que permaneça como potencial na maioria dos casos, incluindo aí a maioria das ocorrências propriamente criminais.
Quando este falso bom senso contamina as próprias organizações policiais, a questão se reveste de uma dramaticidade ainda maior. Ao tomarem, de boa fé, a idéia de que o uso da força só se daria de forma episódica, tópica e extrema, os policiais acabam por excluir de suas técnicas um elemento central para a boa resolução de seu trabalho: o uso comedido da força. Assim, a discussão sobre o uso de força tem que estar contido na discussão sobre a "abordagem" policial – em seu sentido técnico, a norma ou guia de comportamento na relação entre o policial e uma dada circunstância. Quando se tenta estabelecer práticas de abordagem em que a força estaria excluída exceto em direta proporcionalidade pelo uso de força contra a polícia, retira-se da polícia toda iniciativa de uso comedido e adequado da força. De fato, acaba por se remover das organizações policiais uma parte importante de sua superioridade de método diante das situações de desordem e ilícito, vulnerabilizando-se os policiais na razão direta da gravidade da ameaça enfrentada. Não é demais lembrar que os índices de vitimização policial têm sido extremamente elevados nas grandes cidades brasileiras.
Em situações de prestação de auxílio ou assistência, esta inadequação procedimental é menor; mas quando o uso concreto da força adquire centralidade, acaba conduzindo as polícias, desprovidas de método, à violência, ou melhor, ao uso amador, ilegítimo, ilegal da força. Ao contrário do que espera o falso bom senso, isto é mais grave ainda naquelas interações corriqueiras entre policiais e cidadãos – situações de baixa visibilidade e que não envolvem o emprego da arma de fogo. Normalmente inscritos no universo difuso e volátil dos conflitos e das desordens, esses episódios escondem o amplo uso inadequado da força. Geralmente, estes episódios aparecem nos registros de ocorrência ora como "desacato à autoridade", ora como "abuso de autoridade".
O problema reside em que as organizações policiais têm que ter um enquadramento mental que permita ao agente de ponta, diante da situação concreta, articular todos os recursos de que dispõe de forma a poder prover e sustentar a ordem pública. Muitas vezes, isto se perde quando se toma o ponto de que qualquer uso de força consiste, a priori, em violência policial. De fato, o que está em jogo é exatamente a capacidade de a organização dispor de um acervo de conhecimentos e técnicas que qualifiquem e orientem a ação do policial de ponta, permitindo-lhe aplicar a medida suficiente e comedida de força numa dada ocorrência. Percebe-se assim como a ausência de uma regulação formal do que sanciona ou não o uso de um determinado nível de força tende a levar a um emprego máximo de força. Normalmente, vários recursos estão disponíveis ao policial, e lhe permitem trazer à lembrança dos envolvidos numa dada situação o seu respaldo pela força até o seu emprego concreto. Pode-se perceber a presença desta possibilidade desde o momento da existência de polícia (e o risco de repressão), passando pelo chamado – ou ameaça de chamado – da polícia, até a chegada do policial fardado, incluindo sua aproximação, seu posicionamento físico em relação à situação, seus movimentos corporais, sua intervenção no tom de voz e na forma discursiva adequados, a iminência do uso e o uso de força física, do cassetete, da arma de fogo, da solicitação de reforço. Note-se que numa técnica de abordagem madura, não se trata de um gradiente nem obrigatório e nem inexorável, mas de uma palheta de alternativas que busca produzir obediência em sintonia com a dinâmica do evento em curso. A definição das diversas normas e procedimentos que uma dada força considera corretos para seu pessoal em suas relações com o público é uma das variáveis centrais quer de uma doutrina de policiamento quer da política de segurança de uma dada região.
Ao se tomar, portanto, a ação policial mediante um enquadramento que confunde iniciativas operacionais (ações de prevenção, tais como programas anti-drogas ou uma blitz rotineira; ações de repressão, como a resposta a um assalto a banco, por exemplo) com as necessidades táticas da abordagem, abre-se a porta para uma contaminação profunda do preparo dos policiais. De fato, percebe-se como acaba por se ratificar mais uma instância em que a prescrição do comando será, necessariamente, contraditada pelas decisões dos policiais de ponta. Numa ação de prevenção, não pode haver uso de força? Numa ação de repressão, usa-se necessariamente arma de fogo? Vê-se como a realidade do uso comedido de força pode determinar que o policial tenha que se defender a tiros contra uma ameaça durante um programa anti-drogas ou, simplesmente, uma blitz; ou que a simples chegada da polícia militar leve os assaltantes a se renderem. O correto reconhecimento de que o trabalho policial militar, mesmo na sua vertente anti-criminal, não se reduz à repressão é um passo importante e correto; querer deduzir daí situações que correspondam necessariamente a uma forma de emprego de força é um equívoco.
Esta discussão foi necessária porque o tema do uso de força se dá de forma diferenciada nas diversas polícias militares. Há PMs em que se evidencia a consciência de que o treinamento do uso de meios de força precisa ser revisto, e toda a polícia requalificada numa forma de preparo e emprego mais compatível com as necessidades do provimento de ordem pública de uma sociedade democrática do que o ato de repressão com uso pleno da força. Em contraste, em muitas PMs a força do hábito prejudica a possibilidade do uso adequado de força: herança de tempos em que o Estado enfrentava resistência armada. O armamento que ainda hoje equipa os grupos táticos policiais contradiz as metas de seu treinamento. Dispõe-se de armas automáticas de grosso calibre que são levadas pelos soldados de forma rotineira, mas que não teriam qualquer possibilidade de aplicação nas situações para as quais os policiais militares estão sendo treinados.
Um dos maiores contrastes que se pode evidenciar no trabalho policial militar é o da ostensividade formal de suas ações com a baixa visibilidade da maior parte delas. Por um lado, a presença uniformizada e capilar dos PMs os faz uma presença palpável no dia-a-dia. Tanto na ocupação de seus postos quanto nas rondas, nos momentos em que atendem às ocorrências e têm o direito de acionar suas sirenes, a PM se faz presente em nossa percepção. Assim, a tendência natural é imaginar que a esta ostensividade institucionalmente programada corresponderia um elevado grau de visibilidade no que diz respeito à natureza e aos resultados de suas ações.
Por outro lado, porém, o falso bom senso predominante vincula as ações da PM exclusivamente ao combate ao crime. Como as conseqüências e o impacto do policiamento ostensivo na atividade criminal são, em boa parte dos casos, irregistráveis (como registrar um assalto abortado porque havia policiais próximos? Como registrar um homicídio que não ocorreu porque alguém gritou que a patrulha estava chegando?) e o trabalho que não é vinculado à atividade criminal não é percebido pela população e por parcela dos policiais como trabalho policial, a ênfase organizacional tende a ser concentrada nas estatísticas e registros de ações propriamente repressivas ao crime. De fato, o que parece mais imediatamente perceptível no âmbito da segurança pública são aquelas ações que podem vir a ser objeto de ação legal, tais como os flagrantes, as prisões, as detenções, as apreensões etc. Com isso, obscurece-se o amplo espectro do trabalho ostensivo em favor das atividades reativas e repressivas, que, num círculo vicioso, tendem a ser novamente reforçadas organizacionalmente. Desta forma, porém, perderam-se os mecanismos pelos quais se pudesse registrar a maior parte das atividades ostensivas de polícia. Como resultado, o provimento de ordem pública e o policiamento ostensivo passam a ser subvalorizados diante da contabilidade das ações repressivas e daquelas que constituem infração penal, prejudicando o trabalho preventivo e subvertendo a destinação constitucional das polícias militares.
Este não é um problema trivial, sobretudo quando a opinião pública e os tomadores de decisão cobram uma maior "produtividade" das organizações policiais, e ponderam os recursos a serem destinados a estas agências pelos resultados que elas deveriam produzir. Essa produtividade só pode ser medida em termos daquelas ações que produzem registros, o que leva a uma distorção evidente: se apenas se contabilizam, por exemplo, as prisões, induz-se a comportamentos que podem ir desde desvirtuamentos da própria função de preservação da ordem pública ("deixa começar senão não conta ponto") até o estímulo à produção espúria de resultados ("prende, mesmo que depois tenha que soltar"). A inexistência de instrumentos de mensuração adequados à complexa realidade do trabalho ostensivo deixa as PMs na desconfortável situação de, se atenderem bem ao seu trabalho, serem consideradas ociosas, improdutivas, onerosas e, no limite, desnecessárias.
Daí deriva o drama, muito sentido pelos policiais que valorizam o papel preventivo e reconhecem a necessidade da PM atender à diversidade dos chamados que lhe são feitos. A maior parte do trabalho policial formalmente ostensivo acaba sendo invisível para a sociedade, ao passo que eventuais excessos e abusos, atos violentos "nas ações repressivas", repercutem enorme e negativamente por toda a sociedade. O uso de força (ameaça incluída), onipresente em toda ação policial, passa a ser discriminado como algo intrinsecamente maléfico. De fato, pode-se perceber como um único fato espetacular pode contaminar inclusive as organizações que não estavam envolvidas na situação concreta – os acontecimentos na Favela Naval, em São Paulo, mostrados na televisão, contribuíram para uma piora da imagem da PM de outros estados junto a seu público, sem que nenhuma delas estivesse envolvida. Assim, a dificuldade no uso adequado de força e a invisibilidade da maior parte do trabalho policial passam a ser as questões centrais pelas quais a discussão conseqüente e democrática da ação policial tem que se iniciar em nosso país.
*Pesquisadores do Grupo de Estudos Estratégicos da UFRJ

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